domingo, 1 de outubro de 2017

Contos de Avengar - Uma Carga Especial

Tudo que eles queriam era descobrir se existia um paraíso.
Petrus vivia na periferia sul de Avengar em um condomínio frio e sujo, onde o governo lhe havia destinado um quarto com banheiro e cozinha. Trabalhava na usina de energia, controlando máquinas que forneciam eletricidade para vinte cidades do porte de Avengar. A jornada de doze horas diárias de trabalho, seis dias por semana, não era animadora, apesar de sua função ser considerada privilegiada. Petrus havia conquistado a vaga por ter lutado nas frentes populares no Dia do Levante. Não demorou muito para perceber seu erro, mas não havia muito que fazer. Falar com outras pessoas era perigoso, por isso reservava seus pensamentos para os momentos de solidão. A única pessoa com quem compartilhava suas ideias era Carlos, que trabalhava no setor de manutenção da usina.

Os dois se conheceram no refeitório e aos poucos foi surgindo uma amizade forte. Após um ano de relacionamento, Petrus tomou coragem para expor, ainda que cuidadosamente, um pouco do seu pensamento. Para sua satisfação, suas suspeitas vieram a se confirmar quando constatou que Carlos partilhava das mesmas ideias e ideais. Sabiam que havia outros como eles, mas não podiam se expor, pois, caso fossem denunciados, seriam considerados traidores, crime severamente punido com a morte.

Continuaram suas conversas reservadas e, depois de algum tempo, mais uma pessoa veio se juntar ao grupo: a bela, inteligente e sagaz Carmem, uma enfermeira do Centro Médico. Foi ela que soube, durante os muitos atendimentos, que existiam sobreviventes do Levante que haviam fugido para um lugar supostamente seguro e desconhecido. Talvez fosse apenas mais uma lenda ou um conto de fadas, mas, a partir dessa informação, encontrar essa terra distante e os sobreviventes virou sinônimo de esperança. Mas como conseguir algo assim? 

Em Avengar a vida dos operários tomava rumos perigosos. As rações diárias e o soldo mínimo geravam desconforto, e não demorou muito para surgir uma vasta rede clandestina onde circulavam os mais variados itens de consumo. De pastas de dente a drogas pesadas, prostituição e uma criminalidade crescente que a Polícia Estatal tentava reprimir sem muito sucesso, mas sempre com extrema violência. 

O contingente de policiais era grande, pois fazer parte desse organismo de controle trazia alguns benefícios, como: jornada de trabalho menor e uma remuneração acima da média. Inicialmente foram esses atrativos que levaram Pâmela a se alistar nas forças. O tempo e a doutrinação fizeram o restante. Sua devoção cega ao Governo a transformou em uma caçadora de subversivos, como eram chamados todos os que pensassem diferente. Pâmela só tinha um defeito grave: seu orgulho fazia com que falasse demais, às vezes.

Carmem estava de plantão na Emergência do Centro Médico, quando a ambulância chegou com dois policiais feridos em confronto. Foi designada para atender a jovem policial que havia levado um tiro no ombro. O médico responsável fez os procedimentos necessários e a policial foi levada para um quarto para se recuperar. Carmem estava fazendo a troca de curativos e, como a policial já estivesse consciente, começou a conversar com ela:
— Bom dia, tenente Pâmela! Como está se sentindo? Você teve um ferimento e tanto aqui. Pâmela sorriu num misto de alívio, dor e raiva:
— Malditos subversivos, estavam armados e reagiram.
Carmem sempre pensou muito rápido e aproveitou a oportunidade para tentar extrair alguma informação e disparou: — Nossa, pensei que esta escória não existisse mais, mas deve ser algum alienado isolado.
— Não são, não! Sabemos que existem mais, mas vou acabar com eles um a um, tenho mais dois suspeitos na usina que logo vou eliminar também! — Pâmela respondeu. — Tomara, tenho medo dessa gente só de pensar. Vou trabalhar o dobro para você se recuperar rápido — Carmem completou.
As duas riram juntas.

A notícia caiu como uma bomba sobre Petrus e Carlos. Era preciso fazer algo rápido. Carmem sugeriu que eles saíssem de Avengar para procurar o tal refúgio. Seria um tiro no escuro, mas, pelo menos, havia uma chance de sobreviver e, quem sabe, um dia voltar para resgatar outros. Mas como sair da cidade? Seguiram com suas rotinas de trabalho normalmente e mantiveram os encontros para não gerar nenhum tipo de suspeita em razão de uma súbita mudança de comportamento.

A solução para a fuga foi dada por Carlos e veio a sua mente durante um intervalo na usina, quando estava no jardim, deitado em um banco olhando para o céu. Carlos observou os drones de carga que faziam seu voo suave e silencioso levando materiais de um lado para outro e chegou à conclusão de que seria uma ótima maneira de sair pelos muros. Restava agora descobrir como conseguir um drone de alta capacidade. Depois de muita procura e incursões pelos submundos de Avengar, finalmente conseguiram um Nautilus 105, aparelho utilizado no transporte de detritos para fora de Avengar e, graças aos conhecimentos de Petrus, foi possível programar uma permissão para que o drone atravessasse a muralha sem disparar os alarmes. Com capacidade para 100 quilos, teriam que realizar duas viagens, preferencialmente à noite.

A sorte parecia estar ao seu lado e Petrus agradeceu por morar no último andar, pois isso lhe dava acesso ao terraço do edifício. Transportaram o aparelho em partes e o montaram no local da decolagem. Tudo foi decidido na sorte e Petrus faria a primeira viagem. Com seus setenta quilos, ainda sobrava espaço para levar um pouco de bagagem. O habitáculo era pequeno, mas ele conseguiu se acomodar. A ideia era pousar em um dos prédios abandonados, da antiga cidade, do lado de fora. O controle seria feito de dentro do drone e a memória, apagada ao retorno. Tudo correu bem na primeira viagem, o aparelho atravessou a muralha sem problemas e voou suavemente até um prédio abandonado, pousando sobre o mesmo. Petrus saiu, descarregou e acionou o retorno automático. O aparelho retornou e Carlos apagou a memória da rota e iniciou o carregamento para a segunda viagem. Acomodou-se na caixa para iniciar a viagem quando foi surpreendido por quatro agentes da Polícia Estatal que o levaram preso e recolheram a famosa caixa-preta do aparelho. Era o fim de um sonho.

Do outro lado da muralha, Petrus aguardou o tempo combinado, mas Carlos não apareceu, sabia que alguma coisa havia acontecido. Por um momento ficou pensativo, até que um ruído lhe chamou a atenção. Do meio das sombras surgiu uma figura esguia, que se apresentou de forma suave, mas segura de si. − Meu nome é Tom. Seu amigo não virá e você precisa sair daqui! Petrus o seguiu com uma sensação de que estava fazendo o que era certo, mas que não seria fácil. Porém, essa já é uma outra história.

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